[conto] Ghuleh


A princípio eu não ia fazer postagem de halloween (como acabei não fazendo), mas aí eu encontrei um conto que estava competindo em um concurso de contos de terror e eu adorei. O conto ganhou a competição e eu resolvi trazer para o blog como um post atrasado de halloween. hahaha

Espero que vocês gostem também. :)

Ah, antes que eu esqueça, o concurso foi realizado pela Cabana do Doidão, um bar delicioso que fica lá na terra do meu sossego (cachoeira). Quem conhece a cidade sabe exatamente que lugar é esse. hahaha

Mas pra quem não conhece, é só chegar na praça da 25 e procurar o bar maaaais bonito. :D



Ghuleh
João Marciano Neto

O Ghoul Night era uma das mais respeitadas festas do submundo do cenário musical. O conceito por trás não possuía grande mistério, basicamente se tratava de uma pequena rave realizada em cemitérios reais e distantes dos centros. Não havia dúvidas de que era um evento de caráter ilegal, os organizadores investiam uma boa grana subornando os policiais locais e os responsáveis pelos locais, “comprando” o silêncio dos moradores, selecionando os melhores cemitérios para a festa e convidando os DJs emergentes interessados. Os ingressos eram caros e a divulgação era sigilosa, somente os convidados e revendedores especiais tinham acesso ao site oculto na deep web, e mesmo assim toda edição lotava. A localização macabra era um diferencial que não intimidava o público, pelo contrário, constituía como seu maior atrativo junto com todo o glamour de participar de algo secreto. Todo cuidado valia a pena, Eduarda Fogasa, mais conhecida como KillDark, era uma das realizadoras e uma das principais DJs da história evento. Dos sete anos de Ghoul Night já tocara em três, incluindo a primeira edição.

O primeiro Ghoul Night ocorreu quando era um bolsista em Berlim. KillDark e mais alguns amigos tiveram a ideia bizarra e a puseram em prática. O sucesso foi tão grande que a polícia apareceu e quase foram presos, a partir daí tomaram mais cuidado e se organizaram melhor, juntaram capital e realizaram os seguintes sem grandes problemas. O Ghoul Night já passara por Moscou, Kilkenny e até mesmo pela cidade fantasma de Kennecott, Alasca. Mas a sétima edição lhe era a mais especial, era a primeira vez no Brasil e fazia questão de tocar. Mal dormiu na noite anterior por conta da ansiedade, a cidade se encontrava “invadida” pelos peculiares fãs de música eletrônica. Mais engraçado do que ver os gringos se atrapalharem com o português era acompanhar a população toda confusa por causa daquela gente esquisita. Claro que havia brasileiros, umas das razões por enfim terem feito ali era justamente atender a demanda. A energia era super positiva e contagiante.

Durante a tarde montaram o equipamento com a maior discrição possível. KillDark teve algumas poucas horas de descanso pois conforme o Sol descia a multidão chegava aos poucos no cemitério marcado. Não esperavam e nem podiam superar o número de público que tiveram Kennecott. Oito mil pessoas num cemitério do tamanho de dois quarteirões no interior do Paraná era totalmente impensável, a sétima edição precisava ser mais discreta se quisessem que ocorresse uma oitava no ano que vem. Basicamente o evento era uma sanfona, ampliava e encolhia conforme sua natureza permitia, e surpreendentemente esse movimento só aumentava sua procura. Tinham muita sorte de em pouco tempo conquistarem tanta relevância. Ela podia sentir essa responsabilidade, mas não se desanimava nem um pouco. O dinheiro entrava, sua fama crescia e todo mundo se divertia. No começo lhe incomodava muito quando achavam que era um homem por causa do nome e o som pesado. Quando a viam de verdade, uma mulher negra adepta do figurino cyberpunk, se chocavam e sempre perguntavam incomodados se ela não achava o próprio codinome racista. Atualmente podia se tranquilizar que quase não acontecia mais ou sequer se preocupar com isso. Conquistara seu espaço, era a rainha do evento.

- Pode ir liberando devagar. Vamos enchendo até às sete e meia. Oito começamos. – Ela e Pain Filler repassaram as instruções para o pessoal da segurança.

Pain Filler era outro DJ e idealizador do Ghoul Night. Nome real: Fagner Oliveiras. Mãe alemã e pai brasileiro. Foi por acaso que ele e KillDark se encontraram em Berlim e desde então mantiveram uma parceria funcional. Pain Filler era um monge fora do palco e um maníaco quando tocava, a maior parte da pré-produção ficava em suas mãos graças aos seus dons de administração. Não era do tipo temperamental, mas podia ser insuportável quando inflexível.

- Estou com um mau pressentimento. – Pain Filler resmungou enquanto esfregava o pequeno crucifixo que sempre carregava no pescoço.
- Você sempre tem. – Ela brincou. – Desencana, vai dar tudo certo.
- É diferente. – Ele não parecia nervoso, e sim paranoico. Assustado. – Tem uma energia estranha.
- Ok. Se os mortos levantarem a gente coloca eles pra dançar, certo?

O silêncio que se sucedeu foi estranho e constrangedor. A brisa gélida passou por um breve instante, lembrando-os de onde estavam.

- Vou voltar para hotel. – Pain Filler falou decidido. – Não me sinto bem. Quando melhorar retorno. Tudo bem para vocês?
- Tá. Pode ser. Eu e o Andraz tomamos conta de tudo. Tranquilo., mas vê se volta.
- Eu volto sim.

E lá se ia Pain Filler. KillDark sentiu um calafrio e certa insegurança, aparentemente o parceiro deve ter pego uma gripe ou algo semelhante. Administrar o evento sem ele presente era inédito.

Pelas oito horas começaram a fazer barulho. A música alta logo fez as lápides tremularem. As luzes, a bebida e as drogas transformavam o ambiente de modo surpreendente. Num instante nem parecia que estavam num cemitério, noutro era como se toda a festa fosse engolida pela terra e acabara no canto mais macabro do Hades. Poucos eventos proporcionavam uma experiência próxima do Ghoul Night. KillDark aproveitava para curtir o máximo, ela teria a honra de encerrar a noite e se misturar na multidão a ajudava a sentir o ânimo geral. Devido a ausência de Pain Filler, em alguns momentos tinha que sair do conforto para resolver rápidos assuntos de produção. Ela conhecia o trabalho dele, porém não se sentia tão habilitada, e isso transparecia às vezes. Não era bem um sufoco, somente um transtorno que precisava lidar.

Num ponto de vista global, tudo ocorria perfeitamente bem. Os DJs convidados estavam inspirados, a pirotecnia estava nos trinques, ninguém apareceu para encher o saco e ainda por cima o clima lhes dera um céu e tanto, sem dúvidas já era outro grande sucesso para o evento. KillDark não entendia como Pain Filler podia se preocupar tanto depois de sete anos impecáveis agindo nas sombras e faturando horrores. Logo teriam um capital seguro para um próximo projeto e duplicar, talvez triplicar os lucros e suas respeitabilidades no cenário. A ideia era montar algo de grande proporção e dentro das legalidades para o amplo público, sem abrir mão do Ghoul Night, claro.

O tempo corria diferente ali. Tantas coisas passavam por sua cabeça e as rápidas batidas arrastavam e contraiam os minutos desproporcionalmente. Caso se distraísse acabaria sendo levada pelas massas e se perderia, sem dúvidas todo cuidado era pouco, mas já estava acostumada. No fundo, saber disso lhe abastecia o entusiasmo.

Sem prestar muito atenção no caminho, ela acabou trombando de costas com uma garota por acidente. KillDark se virou para se desculpar, mas a garota não pareceu se importar. Um rápido olhar foi o suficiente para que KillDark sentisse que algo estava terrivelmente errado. Algo muito esquisito para ser ignorado. A garota tinha um aspecto jovem, meio adolescente, o corpo esbelto ajudava a rejuvenescê-la. Pálida como marfim, ela vestia uma camisa com o capuz sobre a cabeça. O casaco era folgado e estava aberta até um palmo acima do umbigo, exibindo o sutiã simples que unicamente usava por baixo. Um short curto, tênis e meiões completavam aquele o figurino todo preto acompanhado apenas de um cachecol cinza enrolado no pescoço para contrastar. Se ela fosse menor de idade não poderia estar ali, era uma regra que faziam questão de manter sob vista fina. Outro detalhe preocupante era que a mesma não possuía a pulseira que permitia o acesso à festa, portanto podia ainda se tratar de uma penetra. Porém, a estranheza que KillDark sentiu não se dirigia a isso. O cabelo da garota, que descia todo repicado até o meio do pescoço, era mais branco que sulfite, suas longas e pontudas unhas, como garras, aparentavam ser feitas de osso invés de queratina e os olhos dela assemelhavam-se a dois faros de ametista. KillDark não estava chapada, nem alucinando sozinha, mas os olhos da garota emanavam luz e as linhas da larga íris se moviam formando novos e complexos desenhos como um caleidoscópio púrpura.

Levou alguns minutos para KillDark perceber que a encarava tempo demais para não ser constrangedor.

- Como você entrou?
- O segurança deixou, oras. – A garota respondeu sem deixar de dançar.
- Cadê sua pulseira então?
- Não tenho. Não preciso.

KillDark se conteve, já havia acontecido de alguém que precisassem subornar exigir que um parente pudesse entrar. Pain Filler saberia identificar se era esse o caso, mas como ele não estava...

- Quem é você?
- Ênio.
- Como?
-ÊNIO! E-N-I-O.
- Ênio? Isso não é nome de homem?

A garota riu antes de continuar.

- É grego.
- Então, Ênio... – KillDark se esforçava para não acabar com a própria voz. – Você é filha de policial?
- Isso é uma cantada?
- Como?
- VOCÊ ESTÁ ME CANTANDO?
- NÃO!

Ênio ficou cara a cara com ela e respondeu:

- Não sou filha, nem irmã de ninguém não.
- Trabalha aqui?
- No cemitério? Não diretamente... – A garota sorriu maldosamente. – Está tentando adivinhar de onde brotei?
- Sim e... Ah... Sou a KillDark. Eu organizo o Ghoul Night e... – Era difícil montar uma frase sendo encarada de modo tão esquisito. - Sabe, se tu por acaso pulou o muro... Eu deveria expulsá-la, mas não sou chata assim.
- Se não é, o que quer afinal?

KillDark não soube o que dizer na hora. Depois de esfriar a cabeça, disse:

- O que veio fazer aqui?

Logo se arrependeu da pergunta. Era tão óbvia que chegava aos limites da estupidez. Ênio não reagiu como se fosse, ela apenas subiu numa lápide e agachou equilibrando-se perigosamente. KillDark temeu no mesmo instante que a lápide quebrasse, toda vez que isso acontecia era uma terrível dor de cabeça, entretanto, antes que pudesse adverti-la, a garota respondeu com um olhar insano e um sorriso psicopata:

- Vim matar todos vocês.

KillDark a encarou incrédula, se segurando para não rir. Dentre as possibilidades, ou Ênio era birutinha mesmo ou estava bem chapada. De qualquer forma só lhe restou tratar aquilo como uma piada.

- Matar todos nós? Sério?
- Sério. Vocês todos vão morrer aqui.
- E você vai nos matar?
- Isso.
- Por quê?

Ênio riu como se aquela sim fosse uma pergunta óbvia.

- Porque estou com fome.
- Fome? – KillDark já ouviu muitos papos esquisitos de gente drogada, entretanto aquele começava a lhe deixar tensa.
- Claro... Ok, uma parte é por diversão. É muito divertido. Eu realmente gosto, mas está no meu sangue. Mato, pois tenho fome.
- Escuta, tem mais de mil e quinhentas pessoas aqui. Não acha que é muito?
- E eu preciso comer tudo agora? Eu não preciso de tudo isso.
- Não seria desperdício?
- Matar nunca é desperdício. O que eu não como agora, como depois de morto. O que não como, os vermes comem. Sem desperdício.

KillDark se assustou com a expressão dela, não tinha notado antes que Ênio possuía mais oito pares dentes tão afiados quanto seus caninos vampirescos. Aquela garota tinha problemas, podia apostar nisso.

- Você não deveria estar aqui. – Ela soltou sem pensar.
- Sempre me dizem isso, só que desta vez são os outros que não deveriam estar onde estou.
- O quê?
- Eu gostei de você, “KillDark”. – Ênio se pôs de pé na lápide e voltou a dançar quando a música acelerou. – Vou te matar por último.

Normalmente ela não se incomodaria, mas KillDark levou a ameaça a sério. Mesmo não acreditando na conversa toda, sabia que a garota causaria confusão a qualquer segundo. KillDark acelerou o passo e saiu esbarrando em todo mundo até alcançar um dos seguranças, olhou para trás e avistou Ênio acenando em sua direção. Ainda recuperando o fôlego e a calma, ela deu a ordem:

- Está vendo aquela de cabelo platinado? Bota pra fora.
- Quem de cabelo platinado? – O enorme homem perguntou.
- Aquela garota ali.

KillDark se virou. Ênio desaparecera na multidão.

- Agora a pouco...
- Algum problema?

KillDark respirou fundo e deixou o susto passar. Precisava ser racional.

- Ainda não. Fica de olho numa guria mais ou menos dessa altura, de cachecol e cabelo branco. Está 
de capuz, mas ela é bem esquisita. Se ela começar a dar trabalho manda para fora no mesmo instante.
- Entendido.

KillDark pegou uma cerveja e foi para trás do palco, não queria que os delírios de uma “Maria Ninguém” estragasse uma noite tão perfeita. Não mesmo. Ela não gostava de admitir, mas era uma pessoa muito sensível a comentários carregados de energias ruins. Na companhia dos técnicos ela se sentiu mais segura e trocou algumas palavras com os demais DJs para descontrair. A mistura de sotaques e idiomas tornava a conversa engraçada, a todo instante alguém não sabia como traduzir o que queria falar e acabava dizendo coisas sem nexo. O álcool cooperava um pouco naquela pequena Babel, a mímica muitas vezes era a principal solução. Entre um gole ali e um cigarrinho lá, KillDark não conseguia se livrar da sensação de constante alerta. Se pudesse fazer uma boa comparação, seria como saber que há um palito de fósforo acesso na beira de um galão aberto de gasolina. Depois de um pouco mais de uma hora tentando se livrar daquilo decidiu que era o momento de buscar uma bebida mais forte.

Saindo da zona de segurança mais uma vez tentou se misturar na galera. O nervosismo a fez se esquecer da sua playlist, ela tinha selecionando antes algumas músicas, mas na gostava de sentir o que a festa pedia. Aquela noite lhe parecia mais longa e sombria que o habitual, não tinha certeza se conseguia improvisar um som igualmente macabro.

- Você toca no final. Por que não me contou?

KillDark se virou e deu de cara com Ênio mais uma vez. Seus rostos estavam tão perto que bastaria uma das duas se desequilibrar para se baijarem. KillDark recuou dois passos e gritou:

- Está me seguindo?
- Não. Foi coincidência. – Ênio sorriu. – Não sabia que tocava. É a última, não é? Sobe as três. Francamente, parece até que coisa do destino.
- Destino?
- É. Eu queria aproveitar sua festa antes de começar o “meu show”. Estava na dúvida, mas agora acho que vale me segurar mais um tempinho.
- Qual a sua afinal? – KillDark se irritou. – Fugiu do sanatório? Tomou doce demais?
- Tenho que responder todas? Eu já não disse da outra vez?
- Tá esperando o quê, doida?
- Você subir no palco.
- Segurança! – KillDark gritou. – Alguém chama um segurança, por favor. Segurança!

Ênio caiu na risada.

- Está assustada?
- Eu? Não! – KillDark retrucou.
- Caramba, está se borrando!

KillDark a agarrou pelo braço e a apertou com força, porém sua atitude só divertia cada vez mais Ênio.

- Isso acaba agora!
- Ainda não. Pode tentar, mas não vai me deter. Vocês vieram, eu os achei. Lute até que morra, sangre e logo corra. Eu já avisei, já expliquei. Nos cruzamos para o azar de vocês. Será o que tem que ser e se repete outra vez. Má sorte. Mato porque tenho fome.
- Carlos! Matias! Qualquer um, porra!

KillDark berrou até que três dos seguranças cruzassem a multidão e chegassem nela. Inexplicavelmente Ênio desaparecera instantes antes, o que infureceu KillDark. 

- É oficial. Achem uma maldita garota de cabelo branco sem a pulseira e a tirem daqui!

Ela passou toda a descrição de Ênio, não poupando um detalhe sequer, e ainda prometeu um bônus para quem a tirasse da festa. Era a primeira vez que perdia a cabeça e a primeira em que o Ghoul Night tomava uma atitude tão agressiva. Os seguranças repassaram a ordem pelos rádios, porém pareciam descrentes da história. KillDark já teve que lidar com alguns malucos nada saudáveis, para o bem ou para o mal o fato de festejarem num cemitério atraia também certos problemáticos, mas nunca antes alguém ameaçara com uma chacina. No máximo já tentaram um sacrificar uma cabra para Satã, contudo nunca falaram de homicídio em massa até esse dia. Nem mesmo em Moscou! Ela não sabia quem era Ênio, somente alimentava o desejo de não vê-la nunca mais. Só de pensar nela seu corpo era dominado por um mal-estar poderoso.

Infelizmente desejar não era o bastante. Toda vez que caminhava entre o público, ou olhava para ele, avistava Ênio. A garota mantinha uma boa distância, entretanto a cada vinte ou trinta minutos ela surgia no seu campo visão apenas para desaparecer num piscar. KillDark se questionava se ela era real, se podia ser alguma assombração ou qualquer outra coisa que poderia sair dos livros do King. O cemitério estava lotado, verdade, mas não havia como uma pessoa normal se esconder tanto tempo de sessenta seguranças e ainda brincar de stalker. KillDark tentava se concentrar na realidade, nos fatos científicos. Mesmo que a cretina se explodisse não havia como ela cumprir a ameaça de matar todos. Por mais motivada que fosse, era apenas uma magrela contra um mar de gente. Então por que se via incapaz de não levá-la a sério? O que Ênio tinha que alimentava tanto medo?

Não importava onde fosse, a voz dela continuava a ecoar em sua mente, repetindo impaciente e feroz a mesma frase doentia:

“Mato porque tenho fome.”

“Mato porque tenho fome.”

“MATO PORQUE TENHO FOME.”

KillDark nunca odiou tanto uma festa. Seu estresse chagara ao ponto de se sentir incomodada com o volume alto e os gritos eufóricos. Ghoul Night se tornara um pesadelo de repente, o enjoo lhe embrulhava e a enxaqueca tentava a derrubar. A responsabilidade caia sobre suas costas e ela estava disposta a provar que era maior do que tudo aquilo, que não se abalaria por nada. Muitos compareceram somente porque souberam que KillDark tocaria, seus fãs mereciam sua atenção e respeito. Nunca foi fácil, a estrada até ali sempre foi tortuosa e o esforço sempre valia a pena. Ela se focou em tudo que conquistara e sentiu o olhar de Ênio se afastar de seu espírito.

O tempo voou. Num instante chegara sua vez. Quando foi apresentada, o povo a ovacionou. Quando subiu, fizeram mais barulho que as caixas de som em sua homenagem. A emoção era contagiante, todo aquele carinho a fortalecia toda vez que precisava. Mais que uma lembrança feliz para tempos difíceis, era a pura demonstração de sua força, de sua capacidade. Do alto ela localizou Ênio. A garota estava de pé sobre outra lápide, bem visível, assistindo-a enquanto mordia o lábio em sinal de ansiedade. KillDark não se intimidou, pelo contrário, aceitou a provocação. Ela agarrou o microfone, deixou uma base rolar e falou:

- Guys, tonight a bitch tried make my night a hell. Well, I intented to show her only I can do that. Brace yourselves, the true ghuleh is here to release the Devil on the Earth!

Como esperado, a mensagem levou a multidão à loucura. Daquele momento em diante não viu mais Ênio, KillDark se sentiu vitoriosa e livre para dar tudo de si. Tocou e improvisou com nunca antes, seu som saia mais agressivo, veloz e com uma animalidade brutal. Toda a raiva se convertia numa explosão criativa inimaginável. Esperava que alguém estivesse filmando, pois ficou curiosa para se ver naquele instante depois que acabasse.

Foram mais de vinte músicas seguidas, sem intervalo ou pausa, num intervalo de uma hora e meia. Músicas e remixes invejáveis por qualquer DJ que se esbanjava pela batida pesada, a iluminação teve pequenas dificuldades em acompanhá-la, era a primeira vez em anos que renovava de imediato seu repertório. KillDark criara de improviso hits que mereciam presença num CD, ela se esforçava para memorizar o que fazia, mas teria que contar com a gravação do seu computador. Sempre fora prevenida nesse aspecto, todo show mandava registrar suas manipulações para o caso de ter feito algo interessante e reaproveitável. Suas mãos já doíam e as pernas tremiam pelo longo tempo de pé, pelo horário era momento de encerrar e ela tinha toda a saída bem planejada. Só não contava que repentinamente o equipamento desse defeito.

Sem causa aparente, todo o maquinário passou a agir sozinho. KillDark tentou pausar, reiniciar o sistema, desligar e até tirar da tomada, mas o equipamento continuava a funcionar e a produzir uma batida furiosa. KillDark deu um tapa no teclado e uma frase saiu com a misteriosa música:

“Look out-out-out!”

Aquela não era uma mera voz do arquivo do programa, ela reconhecia aquele timbre. Segundos depois mais frases vieram a tona:

“I g-g-gonna kill this shiiiit before I fuckin’ ba...
Hungry!
Look out-out-out
I g-g-gonna kill this shiiiit before I fuckin’ ba-a-a-a-ack!!!”

A batida ficou mais grave, tudo estava fora de controle, porém ninguém além dos técnicos suspeitava de nada. Seguiam empolgados como se ouvissem uma canção inédita.

- O que está acontecendo? – Um assistente de palco subiu em auxílio.
- Eu não sei! – KillDark quase gritou. – Deu tilt!

O primeiro grito de horror esclareceu toda a confusão. KillDark e toda a equipe se voltou para o centro do cemitério apenas para presenciar um sangrento massacre. Ênio era tão veloz que mal pudia ser acompanhada pelo olhar, suas garras rasgavam os abdomes de todos ao seu redor e espalhava as tripas pelo chão, ela saltava de um a um arrancando pedaços das gargantas das vítimas com os dentes. Era uma besta incontrolável e tinha todos sob controle. Ninguém conseguia confrontá-la, sua força descomunal esmagava crânios e arrebentava lápides com uma facilidade espantosa. Qualquer um que corria para longe era abordado antes que encontrasse uma saída e tinha as vértebras arrancadas na amarra.

- What the hell is that? – Um DJ francês perguntou em choque.
- The Devil on the Earth. – Outro respondeu pouco antes de arriscar uma fuga.

O terror paralisou KillDark. Aquilo só podia ser um sonho. Um péssimo sonho. Sem qualquer aviso o balcão se incendiou por conta própria. Um bando de ratos fugiu de baixo, deixando o equipamento para desaparecerem de vista após cumprirem o que sua mestra ordenara. Um número incontável de roedores ajudava a manter o cerco e atacava qualquer um que se aproximasse pelo menos um metro. Um técnico precisou arrastá-la para afastá-la das chamas, quando recobrou a consciência KillDark quase entrou em pânico. No ritmo da matança logo não restaria uma alma viva, nenhuma além daquele monstro que devorava os pedaços humanos em sua boca.

KillDark não pretendia ficar parada esperando para ser a sobremesa. Evitando o máximo ser vista, ela correu por trás do palco em direção ao muro sul que dava acesso ao estacionamento. A confusão lhe garantia uma distração, mas as pessoas que tiveram a mesma ideia acabaram sendo um problema. Ênio correu na mesma direção e imediatamente abateu os demais. KillDark, foi agarrada pelo pescoço e imobilizada no chão.

- Onde pensa que vai? Eu quero te provar ainda. Sua pele é macia, seu cheiro é agridoce... Sua carne deve ser deliciosa.
- Eu sou a última, esqueceu? – KillDark arriscou.
- E se eu quiser ir logo para o prato mais aguardado? Quem vai me impedir?

Os dentes de Ênio se aproximaram de seu rosto lentamente, saboreando cada instante. KillDark pensou rápido e respondeu:

- E os outros?
- O que é que tem?
- Se eles escaparem você não terá matado todo mundo. Não era o que queria? Não está faminta? Ou será que percebeu que eu estava certa e não vai dar conta?

Ênio observou os que ainda podiam se mover a caminho da liberdade. Restavam muitos e ela parecia ter desejos conflitantes em sua mente. Com um suspiro irônico ela disse:
- Touché. - Com um rápido movimento ela perfurou a rótula do joelho direito de KillDark com as garras. – Não adianta correr, nem se esconder. Eu já te peguei.

Logo em seguida a deixou para terminar a chacina. KillDark achou que fosse desmaiar com a dor, seu urro a deixou sem ar. Mesmo com a perna toda queimando e incapaz de se movimentar, seus instintos de sobrevivência falaram mais alto e a colocou de pé. Os gritos e o cheiro de morte não podiam ser ignorados, os pedidos de misericórdia eram inúteis, nenhum socorro viria. KillDark se arrastou com dificuldade, rezando a cada passo que avançava para ainda ter tempo. Não era hora de bancar a heroína, sequer acreditava que fosse possível ser bem sucedida em sua tentativa de escape. Mesmo assim se concentrava no objetivo.

- Wait, please!

O DJ francês surgiu num momento oportuno. Ele estava ferido nas costas e todo sujo de terra e sangue, e num ato inexperado de humanismo a ajudou a correr até o muro e a saltá-lo. KillDark quase se apaixonou pela atitude dele. Quase. O massacre no cemitério continuava desenfreado e ambos resistiram ao sentimento de remorso. Às vezes os covardes sobrevivem. Ambos sabiam disso.

- And now? – O francês perguntou apressado.
- My car!

Ela não confiava nele o suficiente para lhe entregar as chaves do automóvel na intenção de acelerarem a fuga. Não quando tinha consciência de que se estivesse no lugar dele dificilmente resistiria a tentação de deixar todos para trás. Porém a sorte não lhes era favorável. Encontrando o carro KillDark percebeu que perdera as chaves. Imediatamente o francês quebrou o vidro e destrancou a porta. KillDark sentou no banco de carona enquanto seu salvador forçava uma ligação direta. Apressá-lo não ajudava em nada, mas não conseguia evitar, o carro não queria pegar e o alarme os denunciava.

Enfim silêncio. O francês o desligou por acidente, com isso sentiram a ausência dos sons horrendos do cemitério. Eles aguardaram em completo estado de alerta por algum sinal de Ênio, mas nada acontecia.

- Is over?
- I don’t know. – Ela respondeu aos sussuros.
- Socorro! – Alguém gritou. – Pelo amor de Deus, socorro!

Na saída do estacionamento metros a frente surgiu uma mulher ensanguetada mancando desesperada. KillDark odiou o maldito cavalerismo europeu do francês quando ele saiu do carro.

- Where you going?
- She needs help.
- We all will die if you don’t back inside and drive!

O francês analisou a situação agoniado. A mulher os avistou e gritou implorando ajuda. Foi o suficiente para que ele tomasse sua decisão.

- It’s a trap, bastard! – KillDark gritou.

Faltando dois metros para o valente francês alcançar a pobre mulher, Ênio saltou o muro e a matou na queda. KillDark não esperou que ela matasse o europeu, as pressas tentou dar a partida várias vezes antes de conseguir. Ênio perfurou o tórax do francês com um soco quando ouviu o carro ganhar velocidade. KillDark dirigia precariamente com sua única perna útil e fez questão de jogar o veículo sobre a maldita criatura que acabara com seu precioso evento.

Ênio não moveu um músculo, somente sorriu desafiadoramente. O carro a atingiu em cheio, arrebentando a grade e tudo mais pela frente. As garras perfuraram o teto, permitindo que se segurasse em cima do veículo em alta velocidade.

- Você não vai se livrar de mim. –Ênio gargalhava. – Confesso que fazia um bom tempo que não me divertia tanto!

KillDark inventava qualquer manobra na tentativa de se livrar dela, as garras rasgavam o metal e várias vezes esteve perto de derrubá-la, porém não obteve nenhum sucesso.

- Pode lutar quanto quiser, é inútil me enfrentar. Está nas minhas veias, nada pode me parar. Você já está morta, não adianta se enganar. – Ênio começou a gritar de euforia. – Não vai escapar. Não vai escapar. Não vai escapar! Não adianta correr, não adianta se esconder. Te caçar aumenta minha vontade de te comer!

- MORRE!

KillDark freou repentinamente, fazendo Ênio voar direto para o asfalto. O carro deu uma rápida ré antes de passar por cima dela. KillDark se deu ao trabalho de atropelá-la sete vezes sem qualquer dó ou piedade. Mais tranquila e com a certeza de ter dado fim naquela criatura infernal após checar o corpo imóvel pelo retrovisor, dirigiu sem rumo enquanto processava os acontecimentos. Ainda se sentia em transe, acreditar que tudo aquilo foi real era um absurdo até mesmo para sua mente. Ninguém confiaria em sua palavra e dificilmente alguém sobrevivera para confirmar a história. 
KillDark conteve o choro, precisava urgentemente de um médico para o que sobrara do seu joelho, entretanto não podia simplesmente chegar no hospital com o carro naquele estado. Não estava preparada para perguntas, não tinha força para bolar uma mentira. Precisava de ajuda, de alguém quem pudesse confiar. Precisava do Pain Filler.

Não havia mensagens dele avisando que estava voltando pro Ghoul Night. KillDark não era religiosa, mas agradeceu à Deus por tê-lo poupado daquele terror. Ela sempre brincou dizendo que ele tinha um anjo da guarda forte por causa da incrível sorte que tinha em evitar e sair de enrascadas, nunca mais ela zombaria disso. Refletindo sobre o que passara, mesmo se superasse jamais voltaria a se envolver com o Ghoul Night. Como já haviam lhe dito sete anos atrás, quando a ideia era só uma piada inocente na mesa de bar, nada de bom vem quando não se brinca com essas coisas.

Sua entrada no hotel foi bem... Inusitada. O balconista só faltou desmaiar ao avistá-la, o que não repercutiu bem para a autoestima dela. KillDark quase adormeceu no elevador, tinha medo de cair no sono estando naquele estado. Pelo pouco que sabia, podia ser um erro fatal. Mais uma vez ela se arrastou com a perna inutilizada, pelo menos o piso encerado do corredor facilitava sua locomoção. KillDark ansiava por uma bebida forte, nada mais leve do que vodka. A dor escandalizava no joelho ferido, corria artéria acima e latejava no fundo dos olhos. Qualquer coisa que aliviasse isso também era mais do que bem-vindo.

Ela se esforçou em lembrar o número do quarto, depois bastou localizá-lo e bater. Inicialmente não houve resposta. Eram cinco e pouco da manhã, obviamente estaria acordando o amigo. Com o cansaço lhe dominando aos poucos, ela bateu novamente, dessa vez com mais força, e o chamou pelo nome real.

- Quero nada.

KillDark reconheceu a voz dele e se tranquilizou.

- Sou eu Fagner. A Eduarda.
- Eduarda? Que Eduarda? – Ele questionou sonolento.
- Porra, quantas Eduardas você conhece?
- Kill? – Ele enfim a reconheceu. – Sabe que horas são?
- É urgente. Eu... Eu preciso de ajuda. Estou sangrando.

Ela ouviu a fechadura abrir. Imediatamente entrou e caminhou zonza até a cadeira, ao se sentar quase caiu no chão.

- O que houve? – Ele perguntou.
- Você não vai acreditar...

Assim que KillDark levantou os olhos se deparou com Ênio, suja pelo sangue de sua carnificina, pulando na cama do hotel. Sob seus pés haviam órgãos espalhados, na cabeceira a metade superior de Pain Filler, jogado no chão a outra metade. Um bando de ratos empilhados trancou a porta enquanto sua mestre continuava se divertindo. KillDark tentou se levantar, mas já não lhe restavam forças.

- Eu acho que vou. – Ênio riu antes de parar de imitar a voz do rapaz morto. – Adorei seu show, de verdade. Nosso grand finale... Adorei tudo! Foi fantástico ter te deixado por último.
- Por favor... – KillDark já não conseguia disfarçar a sua fraqueza. – Você não precisa fazer isso.

Ênio se sentou sobre a cama com as pernas cruzada.

- Eu disse que não tinha como escapar. Eu imaginava ser rápida com você, sabe? Sem dor. Mas depois de toda a ação eu estou a duzentos e vinte e não tem freio que segure essa Ferrari desgovernada. Preciso fazer valer, você abriu meu apetite.

Os ratos correram pela janela aberta. Nem mesmo as pequenas pragas tinha coragem de assistir o que estava prestes a acontecer. Ênio se levantou preguiçosamente e parou para buscar algo na memória. KillDark se jogou no chão e procurou fazer o máximo de barulho possível. Berrava desesperada, socava a parede e o chão, derrubava as coisas que encontrava, mas ninguém aparecia ao seu auxílio.

- Você disse algo antes de começar a tocar... Algo diretamente para mim, como era... No seu discurso havia um trecho totalmente oportuno para este instante. – Ênio se esforçou mais um pouco e se recordou. – Ah, sim. Brace yourselves, the true ghuleh is here.

Ênio preparou as garras e as presas e saltou logo para o ataque. Nos corredores daquele hotel esvaziado por causa dos hóspedes que vieram pela festa secreta e não retornaram, os gritos de KillDark ecoaram antes de engasgarem. Sob os mais terríveis ruídos, um grande volume de sangue verteu para fora do quarto.

Comentários

  1. Olá, Daniella.
    Eu geralmente não sou muito fã de contos, só quando são de terror hehe. E esse eu gostei bastante. Imagine que eu ia em um cemitério a noite hehe.

    Blog Prefácio

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    1. Oi, Sil!
      Eu não iria em cemitério nem por uma festa. hahaha
      Beijo

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  2. Que legal esse concurso! Amo terror e achei o conto super bem construído, não foi a toa que venceu!

    xx Carol
    http://caverna-literaria.blogspot.com.br/

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    1. Oi, Carol!
      Foi exatamente isso o que eu disse quando li, achei muito bem construído e foi o que me chamou atenção.
      Beijo

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  3. Oi Dani!
    Gente, otima ideia. Sério. Acho legal esses concursos que incentivo a escrita.
    Não sou adepto a terror. Sou medroso demais. Ja fiquei com medo so do conto, então, deve ser bom, porque se o objetivo é gerar tensão, ele gera KKKK

    Abraços
    David
    http://territoriogeeknerd.blogspot.com.br/

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    1. Oi, David!

      Eu também acho ótimo quando incentivam a escrita. A gente pretende fazer outro logo logo. :)
      Esse conto é maravilhoso justamente por isso! kkkkkkkkkk
      Eu sou suspeita pra falar de terror porque eu adoro. <3

      Beijo

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